Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Aboio, 2022)
Tempos atrás, quando morava em Belém do Pará, conheci uma bióloga, a Thiely. Ela fazia pesquisa na floresta. Não me lembro exatamente o que ela pesquisava; era mais amiga da minha amiga do que amiga minha. Mas lembro que, certo dia, durante um almoço no Poema – restaurante nas palafitas à beira-rio, no campus universitário mais bonito que já conheci –, ela fez um comentário interessante. Lá, imersa naquele mormaço do meio-dia amazônico, entre uma colherada no lendário mousse de maracujá e um olhar para as águas marrons do rio Guamá, falou que, nas suas viagens de pesquisa pela floresta, ela tinha medo mesmo era de árvore caindo. Mais do que de onça, cobra, mosquito e de todos os outros possíveis perigos que nos vêm à cabeça quando pensamos na Amazônia. É que a gente não imagina quão rápido elas caem, disse. Você ouve um estalo e, no próximo instante, um estrondo, quando esse monte de madeira desmorona no chão. Muitas vezes arrasta outras árvores junto.
Nos últimos três anos morei na floresta. Não amazônica, mas atlântica. E me lembrei bastante das palavras da Thiely. Quantas vezes não corri, eu mais Chico, de uma árvore caindo? Principalmente nos meses de chuva, entre junho e agosto. Andávamos pela trilha, nos nossos passeios diários, ele cheirando tudo e abanando o rabo para cada formiga e eu desviando das poças, quando aquele estalo seco cortava o ar de repente. Aí era só correr, correr cegamente. Não dava tempo de, por exemplo, virar pra trás e conferir em que direção a árvore estava caindo, ou se caía com tronco e tudo ou se era apenas um galho grande quebrando. É que a gente não imagina quão rápido elas caem. E no próximo instante você já ouve o estrondo, o baque no chão, no mesmo chão em que você pisa todos os dias – no passeio de amanhã terá que passar por cima do tronco, que ficou grande e imóvel, atravessado no meio do caminho. Ou ficará presa na estrada, indo ao trabalho ou voltando pra casa, até os bombeiros chegarem para cortar em pedaços e levar embora a árvore caída sobre a via.
Faz alguns meses voltamos à cidade. Aqui no Papicu, bairro de Fortaleza onde a gente mora, tem poucas árvores na rua. As que tem, a maioria, são pezinhos de jasmim e outras minuscularidades, plantadas aqui e acolá em distâncias estratégicas para servirem de enfeite mais do que para dar sombra. Quando as copas ameaçam ficar ligeiramente cheinhas, correndo o risco de aumentar a sombra sobre as calçadas e, quem sabe, tornar o clima um pouco mais agradável para quem anda ou dorme nelas, chega o carinha da prefeitura e faz uma poda. Nunca vi uma delas caindo.
Esta madrugada, porém, acordamos com gritos e estalos secos vindos da rua de trás. Na minha cabeça sonholenta, formou-se logo a imagem de galhos quebrando em cima das pessoas. É que, mesmo morando na cidade, a floresta ainda me habita. Só despertei de vez com a mão firme da Larissa no meu braço:
— Fica deitada, é tiro!
Fortaleza, setembro de 2023
Desenho de Ariyoshi Kondo.